Não é futebol mas é bom saber...
Na sua edição de 28 de outubro de 1950 a Revista do Globo, da editora Globo, de Porto Alegre, um quinzenário com alguma penetração nacional - publicou uma interessante reportagem do ótimo jornalista Rubens Vidal a respeito do então já crônico endividamento do Estado gaúcho. Aquele ano foi emblemático: aconteceram as eleições que levaram Getúlio Vargas de volta ao poder, agora pelas urnas, e, no Rio Grande do Sul, Ernesto Dornelles elegeu-se governador - Salgado Filho, escolhido para concorrer pela coligação liderada pelo PTB no pleito de outubro faleceu, no final de julho, em um célebre acidente aéreo. O Rio Grande, então, vivia um ciclo de otimismo, e Porto Alegre modernizara-se e crescera muito, atingindo mais de 400 mil habitantes. Mesmo assim o Estado devia muito dinheiro para o governo federal, e não tinha como pagar tal conta de "um bilhão" de cruzeiros. Buscando saber os motivos e a origem dessa colossal dívida, Rubens Vidal - autor de um belo livro sobre Getúlio e seu clã, "Os Vargas", editado pela Globo (e, tudo indica, não mais reeditado, o que é lamentável) - fez uma extensa investigação e localizou, exatamente, a data e o fato que originaram tal estado de coisas, o qual pode ser assim resumido: os gaúchos pagaram com dinheiro do seu próprio bolso toda a conta das despesas militares da Revolução de 1930 que deu fim à Velha República e implantou uma nova era no Brasil.
Encontrei tal matéria na coleção do Arquivo Histórico Moysés Vellinho, da Prefeitura de Porto Alegre, e achei muito oportuno transcrevê-lo na íntegra, sobretudo neste momento em que assumiu um novo governador e que o Estado, sem dinheiro para nada, se vê, como sempre, às voltas com a falta de recursos e com a terrível inadimplência. (Vitor Minas). REPUBLICAÇÃO
"Um Bilhão!"
Honesto, mas sem dinheiro, o Estado gaúcho remata o maior drama financeiro da sua história encaminhando-se (horrorizado) para a casa de um bilhão (em déficit).
"Há vinte anos que o Estado do Rio Grande do Sul não paga as suas dívidas. E não as paga por uma razão muito simples: não tem dinheiro. A posição da Província gaúcha é análoga à de um honesto devedor sem recursos cujos esperançosos amigos e credores repetem.
- Fulano é muito direito. Quando tiver dinheiro, paga.
Tranquilizados por esse argumento, os credores do Estado (principalmente o Banco do Brasil) esperam pacientemente um milagre que encha de um momento para outro as vazias arcas do Tesouro Estadual. Enquanto isso, e apesar dos vigorosos esforços de seus governadores, desde 1930 o Rio Grande do Sul vem arrastando, para desespero da administração, a fama de devedor crônico, tanto no comércio interno como externo.
Todos os fins de ano, ao encerrar-se o balanço das angustiosas finanças gaúchas, quando o Tribunal de Contas remete á Assembleia Legislativa a relação geral dos gastos, comentada em relatório minucioso, surgem acusações e esclarecimentos. Mas aos olhos do povo o problema continua confuso. E nem por isso é mais claro nas altas esferas administrativas, onde há queixas veladas, acusações abertas e inculpações agressivas.
- Afinal, quem está com a razão? - exclamou atônito um estudante de economia e finanças da Universidade de Porto Alegre, após uma erudita dissertação do professor sobre orçamentos, balanços, relatórios e exposições de motivos.
É possível responder a essa pergunta direta do estudante gaúcho (e dos seus conterrâneos) se historiarmos rapidamente a vida tormentosa de um déficit que tem agora vinte anos de idade. (Déficit é uma palavra latina que, na linguagem dos economistas, significa "o que falta numa conta". Assim, se ganho mil cruzeiros e gasto ou devo mil e quinhentos, o meu déficit, isto é, o que falta na minha conta, são quinhentos cruzeiros).
A FILHA DA REVOLUÇÃO
Em 1950, falta nas contas do Rio Grande do Sul 300 milhões de cruzeiros. E em 1952 tudo indica que faltará 1 bilhão.
Essa diferença, hoje tão grande, nasceu com a Revolução de 1930. Ao assumir o governo do Estado, logo após a vitória das armas outubrinas, o general Flores da Cunha enfrentou o primeiro desequilíbrio financeiro. É que o Tesouro do Estado tinha emitodo "bônus", isto é, tinha impresso dinheiro para atender às despesas com as forças revolucionárias. Os compromissos resultantes dessas emissões começaram a pesar no orçamento. O Interventor federal, para retirar de circulação esse "dinheiro frio", viu-se obrigado a fazer um empréstimo no Banco do Brasil. Desse modo, conseguiu aliviar o Tesouro de tão pesada carga. Melhor: repartiu-a entre o Estado e o Banco do Brasil, pois até hoje o empréstimo não foi pago, e todos os anos mais de 5 milhões de cruzeiros são gastos de amortização.
Contudo, a situação financeira agravou-se de tal sorte que a administração gaúcha teve de interromper subitamente o pagamento dos juros sobre as dívidas do Estado, ou seja, sobre as apólices da dívida pública. E mais ainda: teve de seguir o triste exemplo de outros Estados brasileiros e suspender o pagamento do que devia no estrangeiro.
HONESTO MAS INGÊNUO
A administração seguinte, que foi a do general Daltro Filho, herdou esses desequilíbrios vindos da Revolução de Outubro: orçamento deficitário em alguns milhões de cruzeiros, atrasos no pagamento da dívida interna e externa. Na sua honesta simplicidade, o novo Interventor, esmagado por estes problemas financeiros, pensou ter encontrado a grande solução com um "programa de austeridade" que eliminou auxílios de qualquer natureza e descarregou o fardo nos débeis ombros do funcionalismo público, cujos vencimentos foram indiretamente reduzidos.
Mas o déficit continuou aumentando.
E aumentou de tal maneira que outro general, o sr. Cordeiro de Farias, ao substituir o colega Daltro Filho na governança do Estado, viu-se na contingência de vender ao governo federal uma parte dos bens do Estado: a frota mercante gaúcha, que tinha um alto valor econômico.
PAPEL, PAPEL, PAPEL
A Segunda Guerra Mundial, provocando um enorme aumento do comércio interno e o subsequente desenvolvimento dos negócios, trouxe uma espécie de agradável embriaguez financeira. O Estado começou a arrecadar mais dinheiro e a crise interrompeu-se momentaneamente.
Enquanto isso, como o conflito internacional impedia a vinda de produtos estrangeiros, a indústria e a agricultura gaúcha começaram a produzir mais para o consumo regional e nacional. Todas estas circunstâncias e mais uma rotunda emissão de papel-moeda, contribuíram para dar aos rio-grandenses uma impressão de progresso. Era no entanto um progresso artificial e marcava o início do período inflacionista em que ainda nos encontramos. (Inflação é o excesso dos meios de pagamento em relação às necessidades das trocas, ou seja, a existência de mais crédito ou dinheiro impresso do que coisas a trocar por ele. E se nesta relação há mais dinheiro e menos mercadorias, é lógico que sobe o preço destas).
BANCARROTA E GENEROSIDADE
Para evitar, ou ao menos adiar, o ressurgimento da crise, a mesma administração aumentou sucessivamente (de 1,25% para 2,0) o imposto direto sobre os negócios, que é o de vendas e consignações. Era uma medida de precaução, já que as finanças estaduais pareciam desafogadas.
Pareciam mas não estavam. Porque, ao terminar a Guerra, em 1945, normalizando-se o comércio internacional, os produtos estrangeiros voltaram a concorrer com os nacionais e retraíram-se os mercados consumidores. A consequência imediata foi um brusco desequilíbrio na economia e nas finanças rio-grandenses. O Estado do Rio Grande do Sul ficou ameaçado de pura e simples falência.
A crise estourou na administração Cilon Rosa. Mas as consequências não foram imediatas, graças a um clássico empréstimo, que no caso foi de 150 milhões de cruzeiros (inicialmente destinados à execução do Plano de Saneamento do Estado). Generosas subvenções a obras de benemerência (cerca de 90 milhões) marcaram esta administração.
EMPRÉSTIMO ARMA
No governo constitucional do sr. Walter Jobim a crise, contida temporariamente nos diques de papel da inflação, irrompeu com dobrada violência. Nos termos de nossa história administrativa, crise significa empréstimo - e um novo empréstimo de 150 milhões de cruzeiros foi prometido pelo governo federal (destinados ao Plano de Eletrificação do Estado). No entanto, a abertura dos créditos sofreu sucessivas prorrogações por motivos políticos, uma vez que o empréstimo ficou sando a arma do governo central contra a "fórmula Jobim" à sucessão presidencial. (Essa fórmula sugeria um entendimento entre todos os partidos, mas não o desejava o presidente Dutra sem a exclusão dos trabalhistas de Getúlio Vargas e dos populistas de Ademar de Barros).
SACRIFÍCIO MUNICIPAL
Enquanto isso, o governo gaúcho via-se na contingência de "gastar por conta", e utilizava-se de verbas que pertenciam aos municípios ou eram destinadas ao pagamento do funcionalismo. Segundo a lei, o Tesouro do Estado tem que devolver aos cofres municipais 15% de sua arrecadação quando esta exceder em dobro à do município. Tal determinação ainda não pode ser atendida pelo Estado.
A demora dos dinheiros federais causou uma situação angustiosa e difícil à administração rio-grandense, e houve até vários meses de atraso no pagamento de funcionários de alguns departamentos estaduais (DAER e Brigada Militar).
O Governo do Estado, pelo seu secretário da Fazenda, que na época era o sr. Gastão Englert, enfrentou a crise com uma medida simples, antiga e perigosa: aumento os impostos. Os aumentos foram os mais elevados até agora propostos por qualquer gestor das finanças gaúchas.
O FALSO ALÍVIO
Tais aumentos deram um ano de aparente desafogo ao Tesouro, e o balanço de 1948 mostrou um déficit relativamente pequeno de 40 milhões de cruzeiros (o menor nos últimos cinco anos). Mas, correndo o tempo, como o Estado não fiscalizasse rigorosamente a sua arrecadação, esta diminuiu a ponto de anular aqueles aumentos. Um ano depois, recrudescia a crise.
Finalmente, coincidindo com uma espécie de trégua na "fórmula Jobim", veio a primeira quota do empréstimo federal (60 milhões). Esperava-se de tal soma um alívio à pressão financeira sofrida pelo Rio Grande do Sul. mas o governo central teve a sorrateira prudência de descontar dela a dívida estadual. Resultado: apenas uma quarta parte (15 milhões) chegou ao erário gaúcho.
E assim chegamos à situação atual. Como se vê, todas estas medidas foram modestos analgésicos aplicados periodicamente à crônica dor-de-cabeça estadual.
DE DÉFICIT EM DÉFICIT
Ora, o desequilíbrio financeiro da província gaúcha há muito já ultrapassou a fase da dor-de-cabeça. Do ponto de vista financeiro, o Estado é um organismo doente, quase às portas do desenlace.
O déficit crônico de que vem sofrendo as finanças gaúchas culminou no desastroso resultado do exercício de 1949, e desbordou-se neste ano em 300 milhões de cruzeiros. Quando verificamos que essa soma corresponde a mais de 25% da arrecadação total do Estado, temos toda a sua dramática significação.
Nos últimos cinco anos, a receita foi inferior à despesa de 680 milhões de cruzeiros. Para cobrir essa diferença o Estado teria de empregar mais da metade do que arrecada de impostos e taxas durante um ano.
Em face de tal situação, a dívida pública do Rio Grande do Sul, que em 1945 era de 660 milhões de cruzeiros, saltou espetacularmente para 1 bilhão e 200 milhões de cruzeiros em 1949. Assim, se a administração gaúcha quisesse pagar tal dívida teria de empregar toda a sua arrecadação de um ano e fazer um empréstimo para atender aos milhões que ainda ficaria a dever. E o mais grave é que a metade da dívida estadual é "flutuante", isto é, dívida cujo pagamento os credores podem exigir a qualquer momento.
TEM 280 E DEVE 460
Segundo o balanço de 1949, os recursos do Estado montavam a 280 milhões de cruzeiros, ao passo que os seus compromissos vencidos ou em fase de vencimento correspondiam a 460 milhões. Isso significa que o governo gaúcho, para pagar uma dívida de CR$ 1,64 dispõe somente de 1 cruzeiro.
E ainda de acordo com as cifras do ano passado, se o Rio Grande do Sul, em delírio de honradez, resolvesse vender todo o seu patrimônio, ou seja, tudo o que possui, inclusive os edifícios, as terras, os móveis, utensílios, maquinarias, veículos, portos, acessórios técnicos, etc, e recebesse também o que lhe devem, a fim de pagar as suas dívidas, apenas lhe sobraria a quantia aproximada de 350 milhões de cruzeiros. Para compreendermos a irrisão deste saldo, basta dizer que com tal soma o Estado não poderia comprar duas usinas iguais à da Companhia Energia Elétrica de Porto Alegre.
ALGUÉM DEVE PARA ALGUÉM
Está claro que o Estado não é e nem pode ser administrado como uma firma comercial: a gestão de suas finanças não visa o lucro mas o equilíbrio. E os encargos sociais, quando atendidos, oneram forçosamente a sua estrutura financeira. Mas, quando sofre um desequilíbrio, um Estado sofre-o mais gravemente do que qualquer empresa comercial, e com repercussão infinitamente maior.
Assim, se o Rio Grande do Sul arrecada 1 bilhão e 700 milhões de cruzeiros, e gasta 2 bilhões, a diferença de 300 milhões equivale a uma rotunda dívida sem cobertura, cujo pagamento não se pode dizer se, e quando, será feito.
Naturalmente, se alguém deve, há alguém que não recebe o que lhe é devido. Neste caso, são as prefeituras gaúchas sacrificadas pelo Estado, que não lhes paga o que deve pagar, conforme já o expusemos acima. E o Estado não lhes paga simplesmente porque não tem dinheiro. Resultado: as prefeituras fazem verdadeiros malabarismos para enquadrar os seus gastos obrigatórios e necessários (pagamento de funcionários, conservação das ruas, redes de esgotos etc) dentro da minguada arrecadação municipal. Quanto ao funcionalismo, é um problema que o Estado do Rio Grande do Sul compreende perfeitamente, pois anualmente paga aos seus funcionários a quantia de 765 milhões de cruzeiros, ou seja, 45% da receita pública. Mas não basta compreender quando não se tem os recursos para pagar.
A GRANDE PERGUNTA
Procurando minorar a situação do tesouro estadual, a atual administração deseja entregar à União a Universidade do Rio Grande do Sul e economizar desse modo alguns milhares de cruzeiros. Tal medida ainda não foi concretizada, e se não o for em breve, crescerá o déficit no orçamento de 1951, que já exclui a despesa com a educação superior dos gaúchos.
Qual é (perguntará o rio-grandense médio para o qual escrevemos) a causa fundamental de tudo isso?
A SIMPLES RESPOSTA
Na verdade a causa é de ordem econômica. Se houve um aumento em cruzeiros na produção gaúcha (ocasionado pela inflação), não houve um aumento na quantidade das coisas produzidas. Assim, durante os vinte anos de crise que estamos analisando, a produção rio-grandense não aumentou mais do que o correspondente ao acréscimo de sua população. Desde 1930, não houve até agora um aumento substancial na produção por habitante.
Ora, não havendo maior produção a receita pública não pode aumentar, uma vez que o Estado tira os seus dinheiros do que lhe é dado arrecadar de cada contribuinte, produtor ou consumidor.
O progresso industrial e agrícola, tão agudamente necessário para o Rio Grande do Sul, está por sua vez, e como em toda a parte, condicionado à energia mais abundante e barata e melhores transportes. Na situação em que se encontram, as nossas fontes de combustível (como as minas de carvão), os nossos transportes ferroviários (Revista do Globo, número 514), e a nossa rede elétrica (Revista do Globo, número 509) ainda não podem conduzir a esse progresso. A agricultura, consequentemente, está impossibilitada de distribuir nos mercados consumidores os gêneros alimentícios por um preço razoável - e jamais o fará enquanto a produção agrícola tiver, como agora, um exorbitante preço no custo.
O CAMINHO E O EXEMPLO
Os encargos do Estado multiplicam-se de ano para ano. Mas o seu desequilíbrio financeiros vem acusando a falta de escolas (Revista do Globo, número 508), de hospitais, de estradas, de transportes, etc, falta essa que é uma constante preocupação dos nossos administradores.
Diante da impossibilidade de aumentar a receita pública, os encarregados das finanças gaúchas só tem dois caminhos a escolher: diminuir as despesas (o que equivale a cruzar os braços) ou fazer gastos indispensáveis (o que importa em déficits continuados). Tem sido este último caminho escolhido pelo governo do Estado do Rio Grande do Sul - e o exemplo vem de quase todas as províncias brasileira.
Todos os fins de ano, ao encerrar-se o balanço das angustiosas finanças gaúchas, quando o Tribunal de Contas remete á Assembleia Legislativa a relação geral dos gastos, comentada em relatório minucioso, surgem acusações e esclarecimentos. Mas aos olhos do povo o problema continua confuso. E nem por isso é mais claro nas altas esferas administrativas, onde há queixas veladas, acusações abertas e inculpações agressivas.
- Afinal, quem está com a razão? - exclamou atônito um estudante de economia e finanças da Universidade de Porto Alegre, após uma erudita dissertação do professor sobre orçamentos, balanços, relatórios e exposições de motivos.
É possível responder a essa pergunta direta do estudante gaúcho (e dos seus conterrâneos) se historiarmos rapidamente a vida tormentosa de um déficit que tem agora vinte anos de idade. (Déficit é uma palavra latina que, na linguagem dos economistas, significa "o que falta numa conta". Assim, se ganho mil cruzeiros e gasto ou devo mil e quinhentos, o meu déficit, isto é, o que falta na minha conta, são quinhentos cruzeiros).
A FILHA DA REVOLUÇÃO
Em 1950, falta nas contas do Rio Grande do Sul 300 milhões de cruzeiros. E em 1952 tudo indica que faltará 1 bilhão.
Essa diferença, hoje tão grande, nasceu com a Revolução de 1930. Ao assumir o governo do Estado, logo após a vitória das armas outubrinas, o general Flores da Cunha enfrentou o primeiro desequilíbrio financeiro. É que o Tesouro do Estado tinha emitodo "bônus", isto é, tinha impresso dinheiro para atender às despesas com as forças revolucionárias. Os compromissos resultantes dessas emissões começaram a pesar no orçamento. O Interventor federal, para retirar de circulação esse "dinheiro frio", viu-se obrigado a fazer um empréstimo no Banco do Brasil. Desse modo, conseguiu aliviar o Tesouro de tão pesada carga. Melhor: repartiu-a entre o Estado e o Banco do Brasil, pois até hoje o empréstimo não foi pago, e todos os anos mais de 5 milhões de cruzeiros são gastos de amortização.
Contudo, a situação financeira agravou-se de tal sorte que a administração gaúcha teve de interromper subitamente o pagamento dos juros sobre as dívidas do Estado, ou seja, sobre as apólices da dívida pública. E mais ainda: teve de seguir o triste exemplo de outros Estados brasileiros e suspender o pagamento do que devia no estrangeiro.
HONESTO MAS INGÊNUO
A administração seguinte, que foi a do general Daltro Filho, herdou esses desequilíbrios vindos da Revolução de Outubro: orçamento deficitário em alguns milhões de cruzeiros, atrasos no pagamento da dívida interna e externa. Na sua honesta simplicidade, o novo Interventor, esmagado por estes problemas financeiros, pensou ter encontrado a grande solução com um "programa de austeridade" que eliminou auxílios de qualquer natureza e descarregou o fardo nos débeis ombros do funcionalismo público, cujos vencimentos foram indiretamente reduzidos.
Mas o déficit continuou aumentando.
E aumentou de tal maneira que outro general, o sr. Cordeiro de Farias, ao substituir o colega Daltro Filho na governança do Estado, viu-se na contingência de vender ao governo federal uma parte dos bens do Estado: a frota mercante gaúcha, que tinha um alto valor econômico.
PAPEL, PAPEL, PAPEL
A Segunda Guerra Mundial, provocando um enorme aumento do comércio interno e o subsequente desenvolvimento dos negócios, trouxe uma espécie de agradável embriaguez financeira. O Estado começou a arrecadar mais dinheiro e a crise interrompeu-se momentaneamente.
Enquanto isso, como o conflito internacional impedia a vinda de produtos estrangeiros, a indústria e a agricultura gaúcha começaram a produzir mais para o consumo regional e nacional. Todas estas circunstâncias e mais uma rotunda emissão de papel-moeda, contribuíram para dar aos rio-grandenses uma impressão de progresso. Era no entanto um progresso artificial e marcava o início do período inflacionista em que ainda nos encontramos. (Inflação é o excesso dos meios de pagamento em relação às necessidades das trocas, ou seja, a existência de mais crédito ou dinheiro impresso do que coisas a trocar por ele. E se nesta relação há mais dinheiro e menos mercadorias, é lógico que sobe o preço destas).
BANCARROTA E GENEROSIDADE
Para evitar, ou ao menos adiar, o ressurgimento da crise, a mesma administração aumentou sucessivamente (de 1,25% para 2,0) o imposto direto sobre os negócios, que é o de vendas e consignações. Era uma medida de precaução, já que as finanças estaduais pareciam desafogadas.
Pareciam mas não estavam. Porque, ao terminar a Guerra, em 1945, normalizando-se o comércio internacional, os produtos estrangeiros voltaram a concorrer com os nacionais e retraíram-se os mercados consumidores. A consequência imediata foi um brusco desequilíbrio na economia e nas finanças rio-grandenses. O Estado do Rio Grande do Sul ficou ameaçado de pura e simples falência.
A crise estourou na administração Cilon Rosa. Mas as consequências não foram imediatas, graças a um clássico empréstimo, que no caso foi de 150 milhões de cruzeiros (inicialmente destinados à execução do Plano de Saneamento do Estado). Generosas subvenções a obras de benemerência (cerca de 90 milhões) marcaram esta administração.
EMPRÉSTIMO ARMA
No governo constitucional do sr. Walter Jobim a crise, contida temporariamente nos diques de papel da inflação, irrompeu com dobrada violência. Nos termos de nossa história administrativa, crise significa empréstimo - e um novo empréstimo de 150 milhões de cruzeiros foi prometido pelo governo federal (destinados ao Plano de Eletrificação do Estado). No entanto, a abertura dos créditos sofreu sucessivas prorrogações por motivos políticos, uma vez que o empréstimo ficou sando a arma do governo central contra a "fórmula Jobim" à sucessão presidencial. (Essa fórmula sugeria um entendimento entre todos os partidos, mas não o desejava o presidente Dutra sem a exclusão dos trabalhistas de Getúlio Vargas e dos populistas de Ademar de Barros).
SACRIFÍCIO MUNICIPAL
Enquanto isso, o governo gaúcho via-se na contingência de "gastar por conta", e utilizava-se de verbas que pertenciam aos municípios ou eram destinadas ao pagamento do funcionalismo. Segundo a lei, o Tesouro do Estado tem que devolver aos cofres municipais 15% de sua arrecadação quando esta exceder em dobro à do município. Tal determinação ainda não pode ser atendida pelo Estado.
A demora dos dinheiros federais causou uma situação angustiosa e difícil à administração rio-grandense, e houve até vários meses de atraso no pagamento de funcionários de alguns departamentos estaduais (DAER e Brigada Militar).
O Governo do Estado, pelo seu secretário da Fazenda, que na época era o sr. Gastão Englert, enfrentou a crise com uma medida simples, antiga e perigosa: aumento os impostos. Os aumentos foram os mais elevados até agora propostos por qualquer gestor das finanças gaúchas.
O FALSO ALÍVIO
Tais aumentos deram um ano de aparente desafogo ao Tesouro, e o balanço de 1948 mostrou um déficit relativamente pequeno de 40 milhões de cruzeiros (o menor nos últimos cinco anos). Mas, correndo o tempo, como o Estado não fiscalizasse rigorosamente a sua arrecadação, esta diminuiu a ponto de anular aqueles aumentos. Um ano depois, recrudescia a crise.
Finalmente, coincidindo com uma espécie de trégua na "fórmula Jobim", veio a primeira quota do empréstimo federal (60 milhões). Esperava-se de tal soma um alívio à pressão financeira sofrida pelo Rio Grande do Sul. mas o governo central teve a sorrateira prudência de descontar dela a dívida estadual. Resultado: apenas uma quarta parte (15 milhões) chegou ao erário gaúcho.
E assim chegamos à situação atual. Como se vê, todas estas medidas foram modestos analgésicos aplicados periodicamente à crônica dor-de-cabeça estadual.
DE DÉFICIT EM DÉFICIT
Ora, o desequilíbrio financeiro da província gaúcha há muito já ultrapassou a fase da dor-de-cabeça. Do ponto de vista financeiro, o Estado é um organismo doente, quase às portas do desenlace.
O déficit crônico de que vem sofrendo as finanças gaúchas culminou no desastroso resultado do exercício de 1949, e desbordou-se neste ano em 300 milhões de cruzeiros. Quando verificamos que essa soma corresponde a mais de 25% da arrecadação total do Estado, temos toda a sua dramática significação.
Nos últimos cinco anos, a receita foi inferior à despesa de 680 milhões de cruzeiros. Para cobrir essa diferença o Estado teria de empregar mais da metade do que arrecada de impostos e taxas durante um ano.
Em face de tal situação, a dívida pública do Rio Grande do Sul, que em 1945 era de 660 milhões de cruzeiros, saltou espetacularmente para 1 bilhão e 200 milhões de cruzeiros em 1949. Assim, se a administração gaúcha quisesse pagar tal dívida teria de empregar toda a sua arrecadação de um ano e fazer um empréstimo para atender aos milhões que ainda ficaria a dever. E o mais grave é que a metade da dívida estadual é "flutuante", isto é, dívida cujo pagamento os credores podem exigir a qualquer momento.
TEM 280 E DEVE 460
Segundo o balanço de 1949, os recursos do Estado montavam a 280 milhões de cruzeiros, ao passo que os seus compromissos vencidos ou em fase de vencimento correspondiam a 460 milhões. Isso significa que o governo gaúcho, para pagar uma dívida de CR$ 1,64 dispõe somente de 1 cruzeiro.
E ainda de acordo com as cifras do ano passado, se o Rio Grande do Sul, em delírio de honradez, resolvesse vender todo o seu patrimônio, ou seja, tudo o que possui, inclusive os edifícios, as terras, os móveis, utensílios, maquinarias, veículos, portos, acessórios técnicos, etc, e recebesse também o que lhe devem, a fim de pagar as suas dívidas, apenas lhe sobraria a quantia aproximada de 350 milhões de cruzeiros. Para compreendermos a irrisão deste saldo, basta dizer que com tal soma o Estado não poderia comprar duas usinas iguais à da Companhia Energia Elétrica de Porto Alegre.
ALGUÉM DEVE PARA ALGUÉM
Está claro que o Estado não é e nem pode ser administrado como uma firma comercial: a gestão de suas finanças não visa o lucro mas o equilíbrio. E os encargos sociais, quando atendidos, oneram forçosamente a sua estrutura financeira. Mas, quando sofre um desequilíbrio, um Estado sofre-o mais gravemente do que qualquer empresa comercial, e com repercussão infinitamente maior.
Assim, se o Rio Grande do Sul arrecada 1 bilhão e 700 milhões de cruzeiros, e gasta 2 bilhões, a diferença de 300 milhões equivale a uma rotunda dívida sem cobertura, cujo pagamento não se pode dizer se, e quando, será feito.
Naturalmente, se alguém deve, há alguém que não recebe o que lhe é devido. Neste caso, são as prefeituras gaúchas sacrificadas pelo Estado, que não lhes paga o que deve pagar, conforme já o expusemos acima. E o Estado não lhes paga simplesmente porque não tem dinheiro. Resultado: as prefeituras fazem verdadeiros malabarismos para enquadrar os seus gastos obrigatórios e necessários (pagamento de funcionários, conservação das ruas, redes de esgotos etc) dentro da minguada arrecadação municipal. Quanto ao funcionalismo, é um problema que o Estado do Rio Grande do Sul compreende perfeitamente, pois anualmente paga aos seus funcionários a quantia de 765 milhões de cruzeiros, ou seja, 45% da receita pública. Mas não basta compreender quando não se tem os recursos para pagar.
A GRANDE PERGUNTA
Procurando minorar a situação do tesouro estadual, a atual administração deseja entregar à União a Universidade do Rio Grande do Sul e economizar desse modo alguns milhares de cruzeiros. Tal medida ainda não foi concretizada, e se não o for em breve, crescerá o déficit no orçamento de 1951, que já exclui a despesa com a educação superior dos gaúchos.
Qual é (perguntará o rio-grandense médio para o qual escrevemos) a causa fundamental de tudo isso?
A SIMPLES RESPOSTA
Na verdade a causa é de ordem econômica. Se houve um aumento em cruzeiros na produção gaúcha (ocasionado pela inflação), não houve um aumento na quantidade das coisas produzidas. Assim, durante os vinte anos de crise que estamos analisando, a produção rio-grandense não aumentou mais do que o correspondente ao acréscimo de sua população. Desde 1930, não houve até agora um aumento substancial na produção por habitante.
Ora, não havendo maior produção a receita pública não pode aumentar, uma vez que o Estado tira os seus dinheiros do que lhe é dado arrecadar de cada contribuinte, produtor ou consumidor.
O progresso industrial e agrícola, tão agudamente necessário para o Rio Grande do Sul, está por sua vez, e como em toda a parte, condicionado à energia mais abundante e barata e melhores transportes. Na situação em que se encontram, as nossas fontes de combustível (como as minas de carvão), os nossos transportes ferroviários (Revista do Globo, número 514), e a nossa rede elétrica (Revista do Globo, número 509) ainda não podem conduzir a esse progresso. A agricultura, consequentemente, está impossibilitada de distribuir nos mercados consumidores os gêneros alimentícios por um preço razoável - e jamais o fará enquanto a produção agrícola tiver, como agora, um exorbitante preço no custo.
O CAMINHO E O EXEMPLO
Os encargos do Estado multiplicam-se de ano para ano. Mas o seu desequilíbrio financeiros vem acusando a falta de escolas (Revista do Globo, número 508), de hospitais, de estradas, de transportes, etc, falta essa que é uma constante preocupação dos nossos administradores.
Diante da impossibilidade de aumentar a receita pública, os encarregados das finanças gaúchas só tem dois caminhos a escolher: diminuir as despesas (o que equivale a cruzar os braços) ou fazer gastos indispensáveis (o que importa em déficits continuados). Tem sido este último caminho escolhido pelo governo do Estado do Rio Grande do Sul - e o exemplo vem de quase todas as províncias brasileira.
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