A notícia do incêndio da Praça da Matriz e a absurda fuga do "Major Aragon": ele escapou do presídio para "falar á reportagem" do Correio do Povo. |
Pesquisa e texto: Vitor Minas
Se havia – naquela segunda metade dos anos cinquenta do século 20 - realmente um incendiário a postos para queimar prédios públicos, tal pessoa, ou pessoas, sabiam muito bem o que queriam: depois do Tribunal de Justiça (ver matéria neste blog), em novembro de 1949, e do prédio da Imprensa Oficial, em 1947, foi a vez da Repartição Central de Polícia, na Rua Duque de Caxias, sinistro histórico que destruiu milhares de inquéritos policiais e quase matou mais de 50 presos desesperadamente trancafiados em um dos xadrezes da construção. Foi mais um duríssimo golpe nos serviços de segurança pública do Estado e seria apontado como uma das causas do grande aumento da criminalidade registrado na Capital aquele ano.
O incêndio da RCP aconteceu também em um sábado, às 2 horas da madrugada de 14 de janeiro de 1950, transcorridos apenas 55 dias depois do acontecido com o Foro, com a diferença de que se alastrou de maneira muito mais violenta e causou temores redobrados em toda a população do centro, aterrorizada com a sequência de explosões de granadas de mão armazenadas no depósito de munições e com a possibilidade ainda mais dramática de tudo aquilo, inclusive os colégios femininos situados nas vizinhanças, como o Sevigné, ir pelos ares caso as chamas atingissem um depósito de gasolina e diesel existente nos fundos do prédio, sem contar um grande paiol de explosivos. No final, felizmente, os danos foram somente materiais e judiciários, pois ninguém morreu queimado.
Dos 52 presos na cela cujo cadeado teve que ser arrombado a pé-de-cabra apenas um, detido por vadiagem, fugiu. A população, por sua vez, acordou sobressaltada e surpresa, receando, quem sabe, a eclosão de um movimento militar ou de uma nova revolução: o estampido das granadas, acomodadas em um cofre, e o barulho de balas explodindo, bem como a altura das chamas, faziam prever pelo pior, até mesmo uma guerra. Afinal, na Duque, na parte alta da cidade, hoje considerada centro histórico, está também o Palácio Piratini, sede do governo estadual, e a Catedral Metropolitana.
Tal como o casarão do Tribunal de Justiça e da Secretaria do Interior, o prédio da chefia da Polícia também era quase um pardieiro, uma construção antiga, repleta de paredes, divisórias e tabiques de madeira servidos por arremedos de instalação elétrica. Sem dinheiro e endividado, o Estado gaúcho, comandado por Valter Jobim, havia interrompido ou adiado a construção ou reforma de grande parte dos seus prédios públicos. Pedindo providências para solucionar o problema, o jornal Correio do Povo, ao noticiar o fato, lembrava que, caso isso não acontecesse e não se desse fim a casos daquela natureza, “ninguém mais convencerá a opinião pública que esses eventos não são provocados por mãos criminosas, ou que se verificam pura e simplesmente devido à negligência e ao indiferentismo do poder executivo.”
PREJUIZOS INCALCULÁVEIS – O fogo teria começado na parte alta, no sótão do segundo andar do prédio, provavelmente em uma sala que servia de depósito de colchões e papéis, o que facilitou extraordinariamente a propagação das chamas, percebidas somente por alguns policiais de plantão e por um carpinteiro que dormia ao lado. Um deles comunicou o fato ao inspetor-chefe Nuno Alves Guimarães – neste momento as chamas já saíam pelas janelas. O delegado Geraldo Monteiro Alves, que estava de plantão momentos antes e fora deitar em uma das camas, acionou os bombeiros, os quais, mesmo chegando em grande número, pouco puderam fazer.
O incêndio da Repartição Central de Polícia consumiu milhares de processos, destruindo sobretudo aqueles que diziam respeito aos réus soltos afetos aos “atentados à propriedade”, que foram beneficiados pelo fato de não haver cópias dos documentos, ao contrários dos dossiês dos réus presos. O Instituto de Polícia Técnica também amargou grandes prejuízos de equipamentos e de material, embora o seu responsável, José Lubianca, garantisse que 95% dos prontuários criminais estavam apenas chamuscados nas bordas e poderiam ser aproveitados. De tudo o que havia no plantão daquela noite apenas se conseguiu salvar duas máquinas de escrever, duas mesas, duas cadeiras e o livro de ocorrências.
Bem ao espírito da época (Guerra Fria e polarização ideológica em um ano de eleições presidenciais no Brasil), as autoridades da segurança pública estadual se apressaram em tentar jogar a culpa nas costas de militantes do Partido Comunista Brasileiro, o PCB, o quarto mais importante e votado no País, proscrito recentemente pelo General Eurico Gaspar Dutra. O líder comunista Flávio Argolo, um cirurgião dentista que passava férias na praia de Capão da Canoa com a sua família, foi preso como suspeito e teve de recorrer a advogados, os quais impetraram um habeas-corpus a fim de libertá-lo. As cópias do processo contra ele, trancadas no cofre do gabinete da chefia de Polícia, mostraram-se intactas quando se abriu o cofre, na quinta-feira, 19. Tal peça, mesmo queimada e avariada, ainda assim resistiu.
Meses mais tarde o mesmo “Major Aragón” – aquele que se declarou o incendiário do Tribunal de Justiça - chamou para si a autoria do fato e transformando-se em uma das personagens mais comentadas do ano de 1950 em todo o Rio Grande do Sul. Ele morreu dois anos depois, assassinado na Casa de Correção da Ponta do Gasômetro.
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