sexta-feira, 4 de outubro de 2024

O incêndio criminoso do Tribunal de Justiça : assim se resolviam as coisas

Pesquisa e texto: V. Minas




   Um sinistro de prejuízos incalculáveis, um divisor na história do judiciário gaúcho, um mistério nunca esclarecido: o incêndio que destruiu o Tribunal de Justiça e a Secretaria do Interior do Estado “ficará nos anais policiais da cidade como um dos mais dramáticos e ruinosos, pois que, entre outras coisas, poderá retardar e até desviar a marcha da Justiça em questões de transcendental importância”, noticiou o Correio do Povo naquela sua edição de domingo, 20 de novembro de 1949.
    O cenário era o “vetusto” prédio da Praça da Matriz, construído ainda na época do Império e chamado então, com evidente exagero, de Palácio da Justiça. O dia era sábado, 19. O horário do acontecido, cinco horas, mostrava uma capital quase deserta, com raros transeuntes e noctívagos nas ruas e alguns motoristas de táxi – ou de “carros de praça” – que faziam ponto nas proximidades. Foram eles os primeiros a avistar um “tênue fio de fumaça” que escapava do edifício e rapidamente se transformava em “grossos e assustadores rolos negros que irrompiam pelas frestas do portão principal e pelo teto, já então lançando para o ar um cone de chamas”, conforme descrição do Diário de Notícias. Por volta das 5h15min a parte principal da construção parecia “um vulcão em plena ebulição”. Às 5h30min mais nada havia a se fazer. A fumaça, o crepitar do fogo, o desabamento de vigas, ofereciam um “espetáculo dantesco” aos circunstantes. 
   Mais de dez horas depois, auxiliados por populares e voluntários, os bombeiros das quatro unidades que compareceram ao local ainda apagavam os últimos focos. Comandados pelo tenente Jarci de Queiroz, eles perderam a batalha por questão de minutos: já no início do combate um dos hidrantes falhou, permitindo que as chamas se alteassem novamente de maneira incontrolável. Pior mesmo foi a falta de uma escada mecânica que atingisse o segundo andar, atestando a precariedade dos equipamentos da corporação.
SEM VIGILÂNCIA – A despeito de ser um dos mais vitais prédios públicos do Estado, o Tribunal da Justiça e a Secretaria do Interior estavam sediados em instalações acanhadas que datavam de 1870 e nem de longe condiziam com a sua importância.  Juízes chegavam até mesmo a fazer fila a fim de concederam audiências em suas precárias salas e dezenas de advogados que por ali circulavam, bem como o quadro de funcionários permanentes ou dos cartórios, acomodavam-se como podiam em exíguas repartições.
   Outro fato lembrado dizia respeito à absoluta ausência de vigilância, já que não havia sequer um guarda destacado para a ronda da noite. Dias antes um funcionário havia notado pegadas suspeitas nos seus corredores e que convergiam justamente para o local onde o fogo supostamente teria iniciado. Também se constatou que havia massa na fechadura, indicando que alguém havia tirado um molde da chave para entrar no local sem ser percebido. Tais hipóteses, no entanto, foram acrescidas de outras, dos técnicos do Instituto de Polícia Técnica: eles concluíram que o foco inicial do incêndio teria sido "a sala de cafezinho" da Secretaria do Interior: lá existia um “bico de gás” e que teria ficado aceso durante a noite.
    Quanto aos prejuízos, não somente para a Justiça como também para o funcionamento da Secretaria do Interior, foram imensos e dificilmente mensuráveis. Um bombeiro contaria mais tarde a um repórter que havia, por sorte, salvado o dossiê de um processo volumoso. Ao entregá-lo a um funcionário do Forum este, ao ler na capa o nome de uma parte envolvida, jogou os documentos de volta às chamas... Um dos mais importantes cartórios de crime – onde estavam processos sobre a colocação de bombas Molotov e outros que diziam respeito ao Partido Comunista Brasileiro (colocado na ilegalidade apenas dois anos antes pelo governo Dutra) foi totalmente destruído, apesar de ser um dos últimos a ser atingidos pelo fogo. Outros milhares de documentos e ações foram igualmente consumidos ou seriamente afetados. Processos de heranças familiares, partilhas de bens e inúmeros vindos do interior do Estado, em grau de apelação, também acabaram destruídos, bem como 40 mil cruzeiros em dinheiro – queimados ou, talvez, surrupiados.
    Os prejuízos culturais não foram menores. A queima total da biblioteca do Palácio da Justiça foi uma das consequências mais irreparáveis para a cultura do Estado, já que esta era considerada uma das mais completas do país em sua área, com obras raras do direito e sentenças antigas lavradas em latim e caprichosamente encadernadas. Já os documentos de casamentos – cujas cerimônias cíveis aconteciam em uma das dependências do edifício – não foram afetados pois eram guardados em um edifício próximo e não no Tribunal. Até mesmo os matrimônios programados para aquele dia, sábado, não precisaram ser cancelados, apenas sendo transferidos para os cartórios do registro civil. A situação da Secretaria Estadual do Interior – que funcionava em parte do casarão que dava para a Rua Riachuelo – tinha agravantes e foi descrita como um “prejuízo incalculável” devido aos processos que por ali transitavam – convênios entre o Estado e prefeituras do interior, bem como com vários corpos consulares e a junta comercial. De parte de tais documentos dependiam a Repartição Central de Polícia, o Departamento das Prefeituras Municipais, o Arquivo Público, a Junta Comercial, a Brigada Militar e até mesmo a Biblioteca Pública ali vizinha.
    Com a destruição do edifício do Tribunal de Justiça os serviços judiciários gaúchos sofrerem um desarranjo que levou meses para ser reparado, se é que isto era possível. Certamente intencional, o incêndio foi objeto de muitas discussões nos meses seguintes. O Diário de Notícias insistiu em seu caráter criminoso, muito embora a deficiente polícia técnica da época não tenha conseguido provar tal fato. Meses depois, no ano de 1950, um tipo estranho, um vigarista e mitômano de naturalidade espanhola, o “Major Aragón”, e que estava preso em São Leopoldo, bradou aos jornalistas que havia sido ele o autor do sinistro. Mas a história era por demais inverossímil para ser levada a sério. No dia 23 de agosto de 1952, sábado, tal personagem foi assassinado a tiros por outro detento no pátio da Casa de Correção – um crime encomendado ou talvez motivado por ciumeiras ou rixas com outros detentos.
    Em 1949 Manoel Frederico Gonzales de Aragon estava preso em São Leopoldo, identificado com outro nome, acusado de estelionato e que já tinha passagens por outros presídios brasileiros, entre os quais o de Curitiba, de onde fugira usando uma farda de major do Exército – o que lhe valeu a alcunha de “major Aragón”. Nascido na Espanha, calvo, ar inofensivo e de boa cultura, Aragón era um vigarista especialista em criar “sociedades anônimas”, levando todo o dinheiro arrecadado fraudulentamente. Em estranha coletiva convocada pelas autoridades policiais ele afirmou ter fugido da prisão do Vale dos Sinos (fugido e depois retornado...) com a finalidade de roubar um famoso processo criminal para assim chantagear as partes interessadas e conseguir muito dinheiro. Ele também disse ser o autor do incêndio da Repartição Central de Polícia – nas duas versões, poucos repórteres de fato acreditaram no que afirmava. Mais tarde o Major Aragon disse ter sido torturado pela polícia para que assumisse a autoria dos dois sinistros, algo igualmente discutível em se tratando da volatilidade da personalidade do réu. 
   O certo é que, se houve muitos prejudicados com o episódio (incluindo quem trabalhava no Foro e perdeu o emprego e fonte de rendas), outros tantos também auferiram grandes vantagens com a destruição de processos e acusações. Mais tarde se tentou estabelecer uma ligação entre o incêndio do Tribunal, bem como o da Repartição Central de Polícia, com um grande aumento da criminalidade em Porto Alegre no ano de 1950.


   Até a construção de uma nova sede para o judiciário rio-grandense, os cartórios e repartições passaram a funcionar de maneira improvisada em diferentes locais da cidade, tais como o grupo escolar Paula Soares, na Rua General Auto, e em casas da Rua Duque de Caxias, onde antes funcionava a Secretaria da Agricultura.  No mesmo local do prédio incendiado seria construído mais tarde o Foro Central da capital dos gaúchos.

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