Este é um dos prédios mais antigos do Jardim Botânico, no tempo da antiga Vila São Luís. |
* Em 2008 realizei uma série de entrevistas com antigos moradores do bairro, as quais, depois, no ano seguinte, publiquei em forma de jornal comemorando os 50 anos da instalação oficial do Jardim Botânico. Esses dias, remexendo antigas caixas, achei o bloco de anotações das entrevistas que fiz e resolvi aproveitá-las nesta matéria saudosista e meio histórica. Alguns das fontes aqui citadas já faleceram, mas outras estão vivas. A foto do sr. Ruben eu retirei da sua página no Facebook. Ele não mora mais no JB. (V. Minas)
Os tempos eram outros – bem mais primitivos e pacatos, com pouco conforto e raras facilidades (pelos padrões atuais), porém muito mais solidariedade entre as pessoas. Assim alguns dos moradores mais antigos do Jardim Botânico relembram um passado em que o próprio nome do bairro era outro – chamava-se Vila São Luís. Os seus poucos habitantes conviviam então com uma paisagem que, em muitos aspectos, lembrava uma cidadezinha do interior, se é que as cidadezinhas do interior ainda são as mesmas.
Anos quarenta, cinquenta, sessenta. Espremido entre o Partenon, do outro lado do Riacho, e Petrópolis, mais acima, a Vila São Luís era, realmente, uma simples vila, a “Várzea de Petrópolis”, local de topografia baixa e muitas casinhas de madeira nas quais moravam famílias de modestos funcionários públicos, além de chacareiros, verdureiros, plantadores de flores e de agrião (o solo úmido facilitava o cultivo).
IPIRANGA CHEGOU – O crescimento do Jardim Botânico ocorreu de forma paralela à construção da avenida Ipiranga, a grande obra federal de canalização do tortuoso Riacho, ou Dilúvio (era a porta de entrada das grandes enchentes na Capital), depois rebatizado para “Arroio Ipiranga”, empreendimento que durou décadas. Mais antigamente ainda, no início do século vinte, o local onde está o JB era chamado de “Campo do Simião”, em referência ao primeiro proprietário das terras. Em 1914 – início da Primeira Guerra Mundial – chegaram da Europa algumas famílias russas, fazendo com que a localidade ficasse conhecida como “Vila Russa”. Eles se instalaram na parte mais alta, mais ou menos onde hoje é o Círculo Militar. Depois da Segunda Grande Guerra e do início da “guerra fria”, o termo “russo” passou a ter uma conotação subversiva, digamos assim, e foi deixado de lado. Dos russos originais que aqui chegaram não restou mais ninguém – ao menos que se saiba.
BONDES E GAIOLAS - Antigo morador do Jardim Botânico (morava na rua Surupá), Ruben Carlos Simionovschi, lembra como eram aqueles tempos: “Em 1950, quando eu tinha oito anos, meu pai comprou uma casa na rua Guilherme Alves. Naquela época as ruas do bairro eram sem calçamento e para nos locomovermos tínhamos a opção de ir até a Protásio Alves, na esquina com a Barão do Amazonas, ou seguir até o final da linha do bonde que ficava na esquina da Carazinho. Os bondes eram do tipo “gaiola”. Havia então meia dúzia de chalés na Felizardo e umas oito ou dez casas na Salvador França. Outra opção de transporte era pegar um micro-ônibus na Barão, esquina com a Felizardo, mas a opção preferida era mesmo o bonde para o centro, a passagem era mais barata”, rememora Ruben. “Depois de algum tempo a linha de ônibus foi estendida até a esquina da rua Serafim Terra com a Felizardo”.
Ruben lembra dos bondes e das plantações de agrião e de flores que existiam no bairro. |
OTÁVIO DE SOUZA – Em abril de 1952 iniciaram as aulas na Escola Estadual Professor Otávio de Souza, na rua Felizardo, com apenas sete salas de aula. O colégio foi oficialmente criado em 1942, apenas para educação primária – e somente em 1947 passou a se chamar Professor Otávio de Souza, hoje na rua Afonso Rodrigues.
Seu Pedro Ceratti ainda não morava no JB quando isso aconteceu. Natural de Júlio de Castilhos, ele chegou ao Botânico bem jovenzinho – tinha 20 anos.
“O bairro era cheio de plantações de agrião, um tempo bom. A gente fazia compras no Armazém do Caboclo, na Barão, e na Dona Versa, na Valparaíso. Eu ia nas festas do Clube Americano e assistia aos jogos do Universal e do Leal Santos, e também ia ver os filmes no Miramar, na avenida Aparício Borges. Lembro que a Ipiranga vinha só até a Salvador França, não subia até Petrópolis, ali tudo era mato. Naquele tempo a gente tomava banho e pescava no arroio Dilúvio e jogava bola onde hoje é o Bourbon. Era uma vida bem diferente”.
Seu Pedro (já falecido) chegou aqui em 1959: "Era uma vida muito diferente." |
PAULÃO E SEU ARMAZÉM – Paulo Soares dos Santos (faria 81 anos em 2024), uma das figuras populares mais conhecidas do JB, foi um empreendedor local de sucesso, com seu bar e armazém na rua Valparaíso, onde hoje há uma concessionária de motos. “Cheguei aqui com cinco anos de idade, vindo do interior de Viamão, meus pais vieram de carreta e fomos morar na Barão, depois nos mudamos para a Travessa Municipal, na antiga Vila Russa”, historia ele, citando também o Armazém do Caboclo, o Armazém Parafuso, na Salvador França: “O dono tinha o apelido de Parafuso, vendia querosene, alface, queijo, tudo”. Assim como tantos, recorda da Dona Versa e do Estrela Dalva, na rua Inocência.
“Todos se conheciam e frequentavam os mesmos lugares. Nos anos cinquenta as famílias daqui, que eu lembro agora, eram os Correa, os Lucena, os Santos, os Pieretti, os Maraschin. Existiam bailes de carnaval, canchas de bocha, pescarias no Dilúvio, a gurizada caçava no mato onde hoje é a Fundação Zoobotânica, subindo para a Tarso Dutra, que ainda não existia. O médico do bairro era o Doutor Francisco, atendia em casa, morava na Bento Gonçalves. O pessoal daqui ia para a Bento fazer as compras maiores, lá tinha muitas ferragens, além do restaurante Tico-Tico e do Poletto”.
Paulão não esquece da ponte de madeira que havia entre a Salvador França e a Ipiranga – “a gente pescava embaixo, e do outro lado havia uma vila” – e da fábrica de carroças do seu Lúcio, na rua Guilherme Alves, defronte onde está a igreja católica: “Eles faziam carroças e tinha uma ferraria do lado, para ferrar os cavalos. Era um movimento direto com muitas carroças e cavalos.”
Nesse tempo pacato e sem esgoto cloacal, o bairro nem sempre cheirava muito bem, brinca o comerciante, reportando-se aos famosos recipientes em forma de cubos colocados debaixo das privadas e que acumulavam as fezes das famílias. Depois de alguns dias, eram lacrados e recolhidos pelos “cubeiros”, ou “cabungueiros”, assim como hoje se faz com os banheiros químicos: “O cheiro era horrível”. Eles vinham em caminhões e “às vezes demoravam”.
Joel: um carnaval muito animado, com blocos de foliões e fantasias improvisadas. |
AMERICANO – Rua Serafim Terra, 49. Este era o endereço do Clube Recreativo Americano, onde aconteciam os bailes e as festas do bairro. Joel Duarte, 69 anos (idade em 2008. Joel, infelizmente, já faleceu), contador aposentado e morador da rua Itaboraí, participou de muitas delas e pode enumerar de memória os outros pequenos clubes do JB, estes dedicados ao futebol – o Amazonas, o Universal, o Leal Santos, o Cometa, o Ararigbóia e, mais tarde, o São Pedro.
Ele também recorda das pequenas fábricas que existiam no bairro. “Tinha uma fábrica de carroças, uma de gaiolas, uma de rapadura e outra de doces. Nos anos cinquenta e sessenta as missas eram realizada no hall de entrada do colégio Otávio de Souza e depois na entrada do Jardim Botânico, onde fiz a minha primeira comunhão com o frei capuchinho da igreja de Santo Antônio. Recordo que na Serafim Terra existia o clube São Luís, onde a gente jogava ping-pong, bocha, cartas, futebol e se fazia churrascos e também bailes. A fábrica de rapaduras era na Guilherme Alves, era um produto de ótima qualidade. Já a fábrica de sabão era na Roque Gonzales. E no Botânico, na hoje Fundação, havia também grandes estufas de cactos, praticamente uma floresta que ia ao longo de toda a sua extensão, naquele tempo, entre a Ipiranga e a Cristiano Fischer e Tibiriçá com Salvador França e outras ruas, terras que hoje pertencem ao hospital da PUC, por casas e até pelo Oitavo Distrito de Meteorologia.”
O aposentado também lembra os antigos carnavais do bairro: “Eram muito animados, inclusive tendo eleito uma vez a Rainha do Carnaval de Porto Alegre. Aconteciam na Surupá, na Felizardo e na Barão, o povo se divertia de qualquer jeito, inventavam fantasias ao gosto de cada um, havia blocos formados.”
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